sábado, 6 de fevereiro de 2010

LEITURA PARA O CARNAVAL - 3

O autor desse blog produziu um livro ao qual chamou de “Alagados”. Quase ao final do mesmo, os antigos saveiros da Bahia são focalizados. É um assunto bem “cidade baixa”, portanto absolutamente dentro do contexto do blog.

Como estamos próximos do Carnaval e tem muita gente que não brinca, fica em casa, pensei que talvez fosse o momento exato de transcrevê-los para deleite dos que gostam de ler. Poderão até gostar, pois tem ilustrações e muita informação sobre essas tradicionais embarcações. Não custa nada!


Nota - essa postagem é uma série. Pedimos que leiam as duas anteriores para que possam entender melhor o sentido.
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Dias seguintes Bené fechou as negociações com os proprietários da antiga fábrica e os diretores do clube. Mandou chamar o arquiteto em Maré e pediu-lhe o projeto do Centro de Abastecimento da Ribeira. Este será o nome.

15 dias após foi apresentado o projeto. Seria aproveitada a fachada da antiga fábrica que o arquiteto considerou interessante e tradicional ao local. O restante imitava a antiga linha do Mercado Modelo, o primeiro. Era importante haver uma conexão entre um e outro no que se refere às suas finalidades. Bené gostou! Autorizou o imediato início da obra.

Desse dia em diante, Bené não parou um só instante em Maré. Estava garantindo o abastecimento de produtos aos saveiros que iriam transportar as mercadorias das ilhas e do recôncavo até o Centro de Abastecimento, como se fazia antigamente. De Maragogipe e Maragogipinho sua famosa cerâmica de barro e caxixi. De Nazaré a sua farinha de copioba; de Santo Antônio de Jesus suas flores e verduras. De Mar Grande suas mangas incomparáveis; de Salinas da Margarida seus mariscos; de Valença os camarões secos. Em cada lugar havia um ou mais produtos de grande consumo em Salvador. Fez contato com a Associação de Produtores Orgânicos do Recôncavo Baiano, a Aporba. Estava interessado em incrementar a venda desses produtos na capital. Seria uma referência.

- Mas Bené, produtos orgânicos são caros. Dizia Firmino. O Centro precisa vender o barato.
- Firmino! Eu sei que são caros, mas a idéia é tê-los como referência. Irão atrair pessoas de poder aquisitivo alto. Farão propaganda. Por outro lado, mestre, não esqueça que esses produtos chegarão a Salvador com um custo de frete muito baixo, via saveiro, o que pode torná-los competitivos.
- É. O senhor tem razão.

- Falando em preços, a concessão dos boxes terá uma condicionante muito importante. Seus proprietários serão obrigados a vender qualquer mercadoria com pelo menos 30% mais barata do que em qualquer em outro lugar. Fará parte do contrato. Alugaremos também esses boxes por um preço 30% mais em conta do que em qualquer outro lugar. Montaremos uma central de consulta e fiscalização de preços com agentes nos principais pontos de vendas de Salvador, supermercados e feiras.
- O senhor já pensou em nossas rendeiras. Elas terão espaço no Centro?
- Claro! Teremos uma seção de artesanato da terra e elas estão inclusas.
- E elas também terão que vender 30% mais barato?
- Também elas.

- Agora precisamos tratar dos saveiros. Sei que a atual frota dessas embarcações está muita reduzida.
- É verdade, Bené. Os iatistas estão recuperando alguns, mas talvez não seja o bastante.
- Não é o bastante. Em cada comunidade da Baia de Todos os Santos vou financiar a construção ou reparação de pelo menos duas unidades por cada uma delas. Nós próprios teremos em atividade pelo menos dez saveiros. Vou encomendar a um estaleiro de Valença, mas também vou encomendar aos iatistas dois saveiros muito especiais.
- Porque especiais?
- Ainda não lhe posso dizer.

- Mestre Firmino,além desse trabalho, tenho lido muito sobre o recôncavo. Precisava saber de toda a sua história, principalmente aquela ligada aos saveiros. Milena foi a Salvador e trouxe-me o que encontrou nas livrarias. Por exemplo, o senhor sabia que os saveiros se originaram de antigas embarcações portuguesas?
- Não sabia.
- O primeiro passo de transformação se deu com a substituição das velas bastardas por velas quadrangulares. Olhe aqui no livro o que é uma vela bastarda ou latina:



E aí o autor fala: “os mastros eram feitos de troncos brutos e tortuosos. Eram três mastros, sendo que os dois de ré armavam velas latinas quadrangulares. No mastro da vela grande da proa, armava-se uma vela de terço ou pensão. Depois o Barco do Recôncavo, como era chamado, foi sofrendo alterações até transformar-se no que conhecemos como o Saveiro de Vela-de-içar. A primeira mudança foi a perda do mastro de ré. Em seguida, perdeu-se o traquete, substituído por uma pequena vela triangular”.
- O que é traquete?
- Era o mastro da vela grande na proa da embarcação.
- E onde foram construídos os primeiros saveiros?
- Em Salvador na Maçaranduba e Cabrito. No recôncavo em Santo Amaro, São Roque, Ilha do Bom Jesus, Madre de Deus, São Francisco do Conde, Tubarão, Salinas das Margaridas, Itaparica, Caboto, entre outros. Nesses locais se fizeram os saveiros menores. Já os saveiros maiores, chamados de “barra-fora” foram construídos em Taperoá, Valença, Cairu, Camamu, Cajaíba, Ilha Grande, Porto Seguro, Canavieiras, Caravelas, Nova Viçosa, entre outros.

- Firmino, o nome “saveiro” originou-se de “saveleiro”, barco usado em Portugal para a pesca do savel.
- Savel?
- O savel é uma espécie de peixe migratório da família Clupeidae. Olha a fotografia dele. Que peixe lindo. Dourado!



Firmino, os saveiros foram cantados em verso, prosa e música. Olhe o que Caymmi cantou. Leu os versos:

“Saveiro partiu de noite
Madrugada não voltou
O marinheiro bonito
Sereia do mar levou
A noite que ele não veio
Foi de tristeza para mim
Saveiro voltou sozinho
Triste noite foi pra mim”
- Seu Bené. Não estou lhe reconhecendo.

- Tem mais Firmino Veja este verso

“Nada temas que sou brasileiro,
Sou da tua floresta natal:
Não te temas dos mares comigo
Meu saveiro – que sou teu igual”.

- Quem escreveu isto?
- “Isto” foi escrito por Junqueira Freire. Ele foi monge, beneditino, sacerdote e poeta. Nasceu em Salvador em 31 de dezembro de 1832 e faleceu em 24 de junho de 1855.
- O senhor estudou mesmo.
- É. Firmino. Nessa vida só fiz pescar. Agora estou tentando buscar algum conhecimento para não morrer ignorante.
- Então eu vou morrer ignorante?
- Não Firmino. Agora você já sabe estas coisas. Acabou sua ignorância. Ah!Ah!Ah!

Mas, deixemos de brincadeira. Preciso voltar a falar com os iatistas. Quando eles chegarem sábado peça que me visitem. Pode ser na parte da tarde.
E no sábado à tarde os mesmos Garra e Sergey davam entrada na casa de Bené. Foram conduzidos à varanda.

- É um prazer voltar a vê-los. Tenho algo muito importante a lhes comunicar. Estou construindo um Centro de Abastecimento na Ribeira. Será um grande centro. Espero que seja o novo Mercado Modelo de Salvador. Àquele que foi destruído por um incêndio. Este que hoje temos na antiga Alfândega não conta. É uma área muito grande. Juntamos uma antiga fábrica que ali existia com as dependências de um clube ao lado. Junto ao mar, comprei uma marina que ali fazia questão de existir, mas que era mais casa de shows do que mesmo de barcos. Esse local será destinado para a atracação dos saveiros. Sim, os saveiros voltarão a atracar em Salvador e vai ser na Ribeira.
Os dois iatistas entreolharam-se mudos. Bené prosseguiu na fala. – Vou tentar reconstituir uma ordem econômica que não deveria ter sido quebrada. Refiro-me ao comércio que existia dentro da Baia de Todos os Santos e todo o transporte era marítimo, feito pelos saveiros. Um transporte barato e ecologicamente correto. Os senhores conhecem esta foto. Veja a força que tinha os saveiros:




Isto era diariamente. Milhões e milhões de cruzeiros, a moeda da época, foram comercializados naquela época. Vinha mercadoria de toda a Bahia, das cidades do Recôncavo e das Ilhas. Espero reconstituir essa ordem.

- Mas senhor Bené hoje os tempos são outros. Pronunciava-se o Dr. Sergey com aprovação gestual do amigo Garra. Hoje tem os supermercados.

- É aí que reside o grande engano. Este enfoque está totalmente equivocado. Muito pelo contrário. A população chegou a milhões. Surgiram os supermercados e outros pontos comerciais. Tudo cresceu menos o transporte de mercadorias pelos saveiros, a pequena, mas importante cabotagem dos saveiros. Deveria ter crescido também. Se o destino dos produtos e mercadorias era a antiga rampa do Mercado Modelo e este se incendiou, a comercialização deveria ter continuado, principalmente para os supermercados. Teria crescido com eles. A meu ver houve um impacto emocional negativo e equivocado. Pensaram todos: acabou o Mercado Modelo, também nos acabamos. Diz-se que os saveiristas não eram apenas pequenos negociantes; eram grandes nostálgicos e excelentes boêmios. O Mercado Modelo não tinha apenas boxes; tinha capoeira e lindas mulatas. Quando ele se acabou em fogo, estaria finda a nostalgia do seu ambiente. Há mais um detalhe importante que ninguém abordou. Toda aquela mercadoria que os saveiros trazia não era destinada tão somente ao Mercado Modelo. Havia outros mercados como o de Santa Bárbara, do Ouro, São João, as feiras, de Água de Meninos, do Cortume, do Bonfim, de Itapoã e tantas outras. Todo esse pessoal vinha comprar nos saveiros que aportavam na rampa do Mercado Modelo. Não era para os saveiros arriarem suas velas de içar e encalhar seus cascos nas praias da Baia de Todos os Santos, assim tão de repente. Faltou orientação. Iniciativa. Faltou visão. Faltou marketing.




Este foi o incêndio que acabou com um grande negócio que poderia ter sido muito maior, não fosse a postura equivocada, infelizmente assumida, por toda uma comunidade de negociantes marítimos.

Bené tomou um copo de cerveja e continuou. – O transporte via saveiros era e sempre será um transporte barato, além de corretamente ecológico. Venceu dele um transporte caro, mais demorado e ante-ecológico. É um contra-senso! O maior que eu já vi. Uma mercadoria sai de Maragogipe via terrestre, por exemplo, seus famosos caxixis; segue em direção à Santo Antônio de Jesus, Feira de Santana e só vai alcançar Salvador após quase 300 quilômetros de estrada e muito diesel. Está tudo errado! O Centro de Abastecimento da Ribeira vai tentar corrigir esse erro. Vai ser difícil no princípio. Vocês sabem como são as pessoas e os costumes. Mas eu tenho minhas armas. Vamos usar as mesmas dos outlets que estão surgindo em todo o País. Vamos vender barato. Dizem até que pagar pouco é o chic. Todos os comerciantes vão ter que vender 30% mais barato do que em qualquer outro lugar. Vamos manter uma central de pesquisa de preços e exigir que se pratique uma política de preços baixos. Se duvidar poderemos ser chamados do Outlet da Ribeira. Sei que outlet se refere mais a grifes. Não tem problema. Teremos a grife das rendas de Maré. Vão ser vendidas mais baratas que na ilha. O que importa mesmo é o conceito. Esse será seguido à risca.

- Era só isto o que senhor tinha para nos falar?
- Não senhor Garra. Quero encomendar dois saveiros aos senhores. Outros 10 estão sendo feitos em Valença. Formarão a frota inicial de transporte navegável que abastecerá o Centro Distribuidor. Outras tantas embarcações estão sendo recuperadas ou construídas em diversos locais da Baia de Todos os Santos de forma autônoma.
- E as mercadorias?
- Estavam todas sendo transportadas via terrestre. Os produtores e industriais existentes nesse pedaço estão preferindo um transporte mais barato e mais rápido. Não somente, os saveiros irão transportar para o Centro. Todos as redes de supermercados estão ávidas pela novidade. Já foram feitos contatos. Nosso gerente de marketing do Curral de Saubara que já vende peixe para esse pessoal está tratando disto e são auspiciosos os resultados. Além disso, tem gente já plantando mais manga, mais aipim, mais coco, mais fumo, mais verdura, mais flores, tudo enfim, com vistas a essa iniciativa. O que não foi feito no passado, eu o fiz. Faz muitos meses que estou visitando todas as ilhas e cidades do recôncavo falando do Centro. Ele já está influenciando na economia da região. Graças a Deus!
- Curral de Saubara? De que se trata?
- Curral é o mesmo que um pesqueiro. Está montado numa praia de Saubara que enche e vaza totalmente, como em Itgapagipe. Os peixes vêm com a maré cheia e quando ela vaza, ficam presos no curral onde são recolhidos. Temos um frigorífico no próprio local e outro na Calçada, além de uma meia dúzia de caminhões adequados. É pena que não possamos transportar os peixes via saveiros, por enquanto. Já estamos pensando em construir uns saveiros-frigoríficos. Não sei se vai funcionar. O problema é a capacidade. Vai influenciar no custo.

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